sexta-feira, 19 de outubro de 2012

[Conto] Compreendendo Tholen

Sou Glinor, filho de Glanerlten da Torre da Espada, capitão do exército do Forte da Espada.  Vejo-me na curiosa situação de dar meu testemunho sobre uma das mais novas celebridades de nossa terra: O Flagelo de Vorbyx.
Eu lembro bem do jovem Tholen, um cadete na época. Eu era o tenente responsável pela masmorra de Dol'oan, para quem não sabe, apesar do nome, é um prédio à superfície. Pois abaixo de certa profundidade, não desejamos pessoas com alguns alinhamentos. Por meu voto juramentado, é o mais longe que irei das questões arquitetônicas da nossa prisão
Tholen da Torre do Martelo era magro para a idade. Rosado nas bochechas. Preferia os grandes escudos torres a confrontos mais diretos. E tinha um hábito que quem o conheceu ao partir em sua sagrada missão se assombrarão: Ele sorria.
Ele me cumprimentou, e fez honras a minha casa. Era o seu primeiro dia no serviço obrigatório na milícia das Torres, e estava aos meus cuidados. Era um jovem empolgado e esperançoso, e parecia bravo e racional. Mas eu senti que ele subestimava a função de carceragem. Era a terra dos Anões, afinal. Todos respeitavam a lei, e a lei não era opressora. Falava de quando integraria as patrulhas de caça a Gnolls - um problema momentâneo da época - ou quando juntar-se-ia ao corpo de mercenários de sua família. Pobre coitado.
Havia um motivo para o trabalho da carceragem ser o primeiro dos cadetes.
Eu realmente não esperava que fosse tão rápido. Ainda estava mostrando as celas quando tivemos a visita de nosso hóspede mais corriqueiro. Jango Foreingi - sim, o proprietário da estalagem, mas era um terror aos 17 anos - entrou sozinho, ocupou uma cela vazia, e fechou a porta, sentando na cama de clausuro.
"Meu jovem, o que aconteceu?" - perguntou o simpático Tholen.
"Roubaram a espada de Bolguk esta manhã". - informou o jovem. - "E eu sei que irão até minha casa e me arrastarão pelo crime".
"foi você quem roubou a arma?" - perguntou o cadete.
"Claro que não!" - protesta revoltado. - "Mas como eu sei que não vão acreditar na minha palavra..."
Eu interrompo.
"Tábua solta da bancada do bar?" - sim, eu conhecia os métodos do jovem.
"Se alguém colocou ela lá para me incriminar, talvez".
Claro que a peça estava lá.
Tholen permanecia de plantão na Masmorra, e apenas algumas horas por dia eu o fazia companhia, dividido entre os afazeres de meu título e a instrução do novato. Sua função era vigiar os cativos e ir à busca de infratores no seu quarteirão próximo, bem como atender a desordem e a flagrantes. E a Masmorra era a entrada do gueto Humano de Dol'oam.
A população não-anã é pouca, mas considerável. O Forte das Armas é o único ponto de luz civilizado a milhas, fora tribos rústicas espalhadas pela cordilheira da Espada. Sempre que nômades belicosos surgiam, caravanas na estrada entre Neverwinter e Waterdeep eram atacadas, ou surgia uma suspeita de veio de minérios, os oprimidos refugiavam-se na cidadela. Claro, nem todos eram humanos... Mas fora os gnomos, as demais raças acabavam por convergir para o Gueto por companhia, moradia ou balbúrdia na taverna.
Naquela mesma tarde, dona Briamyr brigou com um elfo estrangeiro chamado Tyliarim por motivo de assédio. Tholen prendeu o elfo. Horas depois, com tudo esclarecido, liberou o elfo e prendeu dona Briamyr.
O pai de Jango foi pagar a fiança e começou a bater boca com o filho. Então, desistiu. Não só isso, tentou pagar a Tholen que mantivesse o garoto em cárcere mais tempo do que deveria... Tholen prendeu o pai. Sabiamente, em cela separada do filho.
À noite, os gnomos que tentaram criar uma guilda arcana na época soltaram acidentalmente dezenas de elementais de fogo na cidade. Enquanto a guarda literalmente "apagava o fogo", Tholen teve de prender os magos, que insistiam em tentar derreter as barras de ferro.
Dois dias depois, foi a semana de bebedeiras pela filha de Nomar estar debutando. Tholen prendeu e soltou tantos ébrios que chegou à conclusão que se prendesse a debutante a paz retornaria.
Sério! consta no nosso manual de procedimento ha oitenta anos!
A última vez que o vi sorrindo foi no final de sua primeira semana. Enquanto ele me passava as ocorrências da noite, e o jovem Jango entrou sem cerimônias na masmorra, pegou uma cela vazia (a sua regular estava ocupada com os Gnomos), fechou a grade, e sentou-se na cama, com o olhar para o chão.
 "Jango? O que aconteceu?" - perguntou Tholen, nem mesmo a sombra do preocupado cadete que teve similar situação outro dia.
Jango não respondeu.
 "Você roubou alguma coisa e foi descoberto?" - insistiu.
 "Não, senhor guarda." - respondeu ele.
 "Certo..." - falou o cadete, já talhado da experiência. "Alguém roubou algo?"
 "Que eu saiba não".
 "Então, garoto..." insistiu incrédulo. - "Por que você se apresentou ao calabouço?!?"
 "Porque é o quinto dia do mês". Respondeu simplesmente.
 Dois dias depois, já era noite alta, e eu sou convocado. Problemas na masmorra. Quase trombo com Bufir da Torre do Martelo, líder do clã e pai de Tholen. Trocamos cumprimentos apressados e rumamos para o calabouço
 Encontramos ele todo às trevas, tochas apagadas, portas externas escancaradas. No interior, armas ao chão e uma escrivaninha virada. Silêncio sepulcral Temendo o que poderia ainda estar ocorrendo, eu e Bufir sacamos nossas armas familiares e seguimos o longo corredor, que desemboca nas celas.
 Todas as grades estavam abertas e suas alcovas desocupadas. Exceto uma. Tholen a ocupava. estava descabelado e sem camisa. sentava-se num banco no canto mais afastado da cela. O trinco estava fechado, mas a chave ainda estava na fechadura.
 Eu destravei e preferi que Bufir assumisse.
 "Meu filho... Quem o trancou aqui?" - perguntou o patriarca.
 "Ninguém. Eu tranquei a mim mesmo".
 "Onde estão os prisioneiros?" - Insistiu
 "Eu os libertei. Soltei todos. Mandei para casa..." - falou envergonhado o anão.
 "Porque você fez isso?"
 Havia cólera e loucura nos olhos de Tholen, embora sua voz permanecesse num tom baixo, em respeito á minha autoridade e à do seu pai.
 "Era a única ... A única coisa que fazia sentido!" - desabafou enfim.
 Bufir desvirou outro banco, sentou-se ao lado do filho, e colocou seu martelo apoiado em seus joelhos.
 "Eu o decepcionei, não foi, meu pai?" perguntou Tholen.
 Bufir respondeu: "De forma alguma. Eu fiz a mesmíssima coisa quando prestei serviço aqui".
 Tholen da Torre do Martelo, Flagelo de Vorbyx, tornou-se o poderoso guerreiro que é hoje naquele dia. Não em força ou técnica, mas em personalidade. Talvez tenha passado um pouco no xenofobismo, mas é um soldado a quem confiaria a vida. Em sua última carta, rumava para uma cidade infestada de demônios.
 E eu quase tenho pena dos demônios.

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